Arte, transformação e significado
Leandro Oliva, gestor do Projeto PALCO, versa sobre o papel da arte na transformação de vidas e quais os aprendizados que leva em sua caminhada.
Como foi o processo de dedicar vida e carreira a um projeto social? Qual foi sua inspiração?
O que mais me motivou, e ainda me inspira e alimenta, é o incômodo diante de uma realidade desigual de oportunidades. É um assunto que sempre me tocou muito.
Entretanto, não foi uma escolha repentina ou planejada com antecedência. Foi o fruto do percurso de minha vida.
Tenho formação em Administração e em Teatro. Dos 20 aos 30 anos trabalhei como educador, ator, produtor, assistente de direção e muitos outros. E essas vivências me levaram a ter contato com instituições sociais.
Comecei com ações voluntárias em 1998 e, de lá para cá, já são vinte anos de trabalho nesse campo. Minha primeira atuação profissional na área foi na Fundação Gol de Letra, em 1999. Em 2001, fui convidado a ministrar aulas de arte e cultura em um projeto que a Roche [empresa farmacêutica] estava começando no Jaguaré, que depois passou a ser chamado de “Vizinho Legal”. Em 2007, já estava na coordenação cultural do projeto e, em 2011, fui convidado a assumir a coordenação geral do programa em suas três áreas - cultura, esporte e saúde.
Ao fim de 2013, fui incentivado a abrir uma organização social. Naquela ocasião, viajei pelo Brasil a fim de conhecer e me inspirar nas organizações aqui existentes. Quando voltei, tinha certeza de que não criaria mais uma ONG, pois estava decidido que não construiria mais um muro na cidade. Em vez disso, elaborei um projeto para fortalecer o ensino de arte em organizações sociais e dentro de escolas públicas. Assim, fundei o Projeto para Arte, Lazer, Cultura e Orientação (PALCO).
Ou seja, não foi algo programado. Foi um caminho que alinhou meus sentimentos, inspirações e propósito. Se não tivesse passado por tudo que passei, não sei se hoje estaria aqui. É um acúmulo de experiências. O Leandro gestor tem muito do ator, do educador, do dançarino, do garçom, do fotógrafo, do produtor, do comissário de bordo, do organizador de eventos, do assistente de direção...
Hoje em dia agradeço por tudo. Ainda bem que fiz as coisas que fiz em minha vida! Tudo me trouxe para este lugar.
Você considera que a atuação frente a problemas sociais é um ponto no qual todos podem atuar?
De uma maneira mais otimista e superficial, a resposta é sim. Qualquer pessoa pode contribuir e abraçar uma causa.
Quando aprofundamos essa resposta, no entanto, vemos que há a necessidade de algumas características, alguns pré-requisitos. Não é possível, por exemplo, que um ser humano sem nenhuma generosidade ou empatia consiga se debruçar sobre a questão social. Se ele não consegue sair de si, como vai olhar nos olhos do outro?
Infelizmente vivemos uma dicotomia. De um lado, muitas pessoas abraçam causas sociais e contemplam o mundo coletivamente. De outro, há uma parcela muito grande que é cega para essas questões. Um viés muito individualista, sem preocupação com o próximo. O que é uma pena: se você olhar para o lado, sempre encontrará alguém que precisa de você e que lhe ensina algo.
Qualquer pessoa pode – e deve – ter consideração por causas sociais. A vida de todos será melhor se fizermos algo.
É um voto, um querer. No PALCO, por exemplo, estamos sempre correndo atrás de patrocínio, de parcerias... Para existirmos, dependemos dos outros. É um lugar que está sempre em risco, vulnerável. Não é nem um pouco tranquilo. Mas é isso que nos inspira a fazer algo. É por isso que resistimos.
Qual o foco do Projeto PALCO? Como ele contribui com as pessoas que dele participam?
O projeto nasceu e se fortaleceu no contexto de ensino de artes em escolas públicas e instituições sociais que se encontram em comunidades carentes de aparelhos culturais. Seu propósito é promover o conhecimento, o interesse e o acesso à arte, ampliando habilidades e competências socioemocionais e culturais nos participantes.
Trabalhamos essas competências para o desenvolvimento individual e coletivo de crianças, jovens, adultos e idosos em situação de vulnerabilidade social. O projeto atende pessoas dos seis aos 95 anos, mas a participação maior é de adolescentes. O que faz muito sentido: é uma fase em que a pessoa pode estar sem rumo, com horizontes obscuros, sem enxergar oportunidades.
O PALCO é um projeto cultural e social que amplia as perspectivas dos indivíduos, que passam a ter sonhos e a realizá-los. Suas vidas são transformadas com muito significado. O Diego Albuquerque Melo, por exemplo, foi meu aluno com 8 anos e agora está com 22. Estudou teatro, fotografia e dança no projeto. Aos 16 anos, foi aprovado para a companhia do diretor Antunes Filho, na qual muitos profissionais sonham em atuar. Hoje está prestando vestibular para Ciências Econômicas. Isso nos alimenta: ver uma vida totalmente transformada, ver que isso começou com a ampliação de suas potencialidades.
Há outra jovem, a Bárbara Clara, que participou do projeto por seis anos. Formou-se psicóloga e escolheu atuar com inclusão de crianças que são ou estão segregadas socialmente por motivos psíquicos. Passou por nosso projeto e fez uma opção de carreira que potencializa outros. É um efeito dominó: você estimula os atendidos a olhar a coletividade. Eles contribuem para um mundo melhor. Assim percebemos que o projeto teve efetividade.
Quantos jovens o Projeto PALCO ajuda atualmente? Como se sente ao ver vidas sendo moldadas em um contexto artístico, fora da violência das ruas?
Em 2017, foram 567 jovens no Jaguaré. Considerando-se todas as frentes do PALCO e outras regiões onde o projeto atua [você poste conferi-las neste link], no entanto, foram mais de 10.000 pessoas atendidas.
Anos atrás, quando dei aula para crianças em situação de vulnerabilidade social, encontrei uma realidade terrível e senti o desejo de colaborar e atuar em processos de mudanças significativas. Durante esse tempo, pude conferir o poder que o ensino de arte tem na ampliação de horizontes. Sinto que isso me move.
“SE A PESSOA CRIA UMA MÚSICA, UMA PEÇA OU UMA DANÇA, CRIA O QUE QUISER PARA SUA VIDA”
Tenho que fazer algo com esse sentimento. Não posso ver uma realidade assim e não fazer nada. A sensação de ver uma vida ampliada seu repertório cultural, de vê-la com mais qualidade, com brilho no olhar, um sorriso e a satisfação de indivíduos, famílias e comunidades ao realizarem sonhos é o que me impulsiona e me dá força para continuar gerindo o projeto.
Você se sente modificado pelas atividades que exerceu? Por quais aprendizados passou durante esses anos?
Fui completamente modificado. De certa maneira, também sou um educando do projeto, porque aprendo diariamente no PALCO.
Hoje sinto que tenho muito mais resiliência. Diante de uma dificuldade, percebo que estou aprendendo e uso isso para avançar com determinação.
O Leandro de antes sentia uma obrigação em mudar 100% das pessoas que cruzassem seu caminho. Assim, quando vi, por exemplo, um de nossos alunos voltar à criminalidade, foi um choque. Senti que era um péssimo gestor, que não deveria mais trabalhar com aquilo em minha vida. Eu olhava para aquele um que voltou e não para os outros 200 que haviam mudado. Anos depois, quando ele abandonou o tráfico, me ligou para contar. Aprendi, com o tempo, a lidar com minha impotência diante de certas situações e a respirar, admirar e respeitar os infinitos tempos ao nosso redor.
Por mais que nos esmeremos, o outro será sempre o outro. Ele vai fazer o que bem entender com o que aprende. Não nos cabe sonhar pelos outros, mas com os outros. Quando percebemos isso, vimos os objetivos do PALCO mudarem ao longo dos anos. Antes, projetávamos na vida alheia passos que julgávamos indispensáveis. Agora compreendemos que, como projeto, nos cabe ampliar horizontes, conhecimento, interesse e acesso à arte, valorizando a polivalência de cada um de nós.
Hoje, escolho com quais aprendizados quero continuar a caminhada. Quando comecei, era um jovem sonhador com uma visão utópica, egoísta de mundo. O grande aprendizado foi esse: vamos caminhar juntos! A mudança individual e coletiva acontece no processo. Acontece vivendo, não focando unicamente em minhas crenças.
Quanto mais estou em contato com o outro, mais estou em contato comigo mesmo e com o mundo. Modifico meus conceitos e evoluo. Hoje sou mais flexível, menos intransigente.
Qual o papel do indivíduo na transformação social? Qual a importância da dedicação pessoal?
Para mim, é uma força motriz. Se não parte de dentro, não chega ao coletivo. Transformação social requer uma transformação pessoal prévia. Chamamos isso no Projeto PALCO de “Eu Interno”.
Se você não quiser mudar, não adianta que os outros queiram que você mude. E essa mudança vem a partir de vivências.
Por isso acredito na arte. A experiência artística passa por cada um, atravessa-nos. Um quadro, uma música ou um filme é visto, sentido e interpretado de maneira única. Essa experiência amplia os significados. É um processo complexo, no qual cada pessoa reage e se transforma de maneira própria. Está ligado à complexidade da vida.
Qual o futuro, no longo prazo, que projeta para os alunos atendidos, suas famílias e comunidades? E para a cidade como um todo?
Em relação aos atendidos - anteriores, atuais e vindouros -, o objetivo primordial é o mesmo: que o impacto do Projeto PALCO proporcione a transformação global de suas vidas. Que seus horizontes se ampliem, que façam escolhas com propriedade, repletas de significado e sentido para eles. Que ganhem perspectiva de futuro.
Queremos ser uma melhoria de vida dentro de suas idiossincrasias. Nos mobilizamos para acabar com a ausência de sonhos dos atendidos. Nossas aulas estão ligadas à criação artística por isso. O indivíduo se vê potente, se vê produtor, se vê criando. Se a pessoa cria uma música, uma peça ou uma dança, cria o que quiser para sua vida.
Quando idealizei o PALCO, vislumbrei um país em que todos pudessem ter acesso à arte. Que fossem quebrados preconceitos como os que eu mesmo escutava dentro de casa: que arte é algo que existe apenas dentro de museus ou que é coisa de rico. Sonho com parques, teatros, escolas e organizações sociais com arte pulsando o tempo inteiro. A arte nos inspira, traz perspectivas na vida, ilumina nossa capacidade de criar e recriar, de reconhecer a potência, poesia e beleza que há em nós, no outro que está ao lado e no mundo.
Desejo que todos se deixem sonhar. Que tenham sonhos e os busquem. São os sonhos que nos movem!
Para saber mais sobre o Projeto PALCO, clique aqui.
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O mestre da cultura caipira Amarildo Pereira Marcos, que há mais quarenta anos trabalha – voluntariamente - com atividades culturais na região de Lagoinha, interior de São Paulo.
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